quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A árvore dos Olhos Verdes - Um conto...

Postado por Suellen (Menina aos olhos do Pai) às 05:18:00
ÁRVORE DOS OLHOS VERDES
Castro Lins


Houve tempos em que os heróis nasciam no nordeste brasileiro, vestiam couro impenetrável, cruzavam a caatinga hostil em seus cavalos impetuosos a arrebanhar. Quando despertos a fuga do boi ligeiro, os vaqueiros disparavam a cavalgar... E quando por fim paralelos ao seu alvo, um desses prendia sua mão firme como corrente no rabo do boi arisco e com um forte desviar esquerdo do seu cavalo, o pobre animal fugitivo vinha ao chão erguendo poeira para ocultar sua queda abruta. Toda aquela perseguição empolgava o dia a dia do sertanejo. E o árido solo nordestino era um coliseu romano onde o homem e a fera arisca furtiva duelavam, uma caça envolta a arte de perseguir e derrubar, uma tourada brasileira que foi parte do trabalho exaustivo do sertão em dias de outrora.

Seu Jaime foi o maior vaqueiro de profissão conhecido entre aqueles tempos, pisara em todos os solos denominados nordeste desse Brasil, derrubou tantos bois quanto os dias da sua vida. Cavalgava esbelto e levava em sua garupa os corações das moças dos vilarejos por onde passava, deixava-as carentes, amputadas de órgão tão vital sempre quando ele partia em busca de uma nova aventura, um novo desafio. Jaime conquistara o respeito do povo pobre pela sua humildade e coragem, ninguém contava histórias como ele! Também se beneficiou de forma tamanha das riquezas dos fazendeiros, que logo careciam de seus serviços como vaqueiro.

O tempo é um boi santo e bravo que nem o próprio Jaime, príncipe dos vaqueiros, poderia perseguir e deter, ele não é nunca arrebanhável e foge como uma presa que zomba de seus caçadores. Conta a lenda que aquele vaqueiro capaz de emparelhar-se em corrida com o boi santo do tempo e, ferozmente, freá-lo puxando por seu rabo para então lançá-lo em terra, esse tão capaz, seria galardoado com uma nova juventude viril. O tempo será retrocedido para coroar esse vaqueiro vencedor.

Durante os dias do mandacaru verdeado, do caju que trava na boca e da pitomba com caroço... Jaime tinha se empenhado sobre tudo nessa vida e sua fama de herói do nordeste ganhou até as terras mais distantes e agrestes, entretanto, o boi do tempo havia fugido de suas mãos de corrente e Jaime envelheceu. O vaqueiro refugiou-se enquanto sua velhice, em uma terrinha simples de trechos salobra no sertão baiano.

O sol que estava sobre a terra, decidiu fixar-se não cedendo espaço para nuvens escuras que lembram um belo dia para o sertanejo. Por um tempo de sobremodo incômodo a qualquer vida, não chovia no sertão. Os rios secaram. A fome tornou-se peste que levou muitos embora consigo. A semente foi a primeira a ser enterrada e lá permaneceu sem nunca ousar germinar. A seca fez da terra esposa estéril e dos homens maridos infrutíferos, certamente a mais algoz conhecida pelo seres que moram embaixo do sol. Poucos fortes da caatinga ainda sobreviviam. Entre estes estava Jaime, quando todos outros de sua idade jaziam mortos.

A vida ainda resistia, cativa a seu velho corpo. O vaqueiro possuía em suas terras uma caverna, um lugar em segredo onde milagrosamente ainda havia água barrenta em um poço secreto. Era dessa fonte escondida que o próprio retirava o seu resto de vida, ainda bebia ele e seu velho cavalo de mocidade. Jaime vigiava atento dia e noite sua fonte, pois sabia bem que não podia dividi-la para mais alguém antes que a seca findasse. Todavia naquela noite ultima, dava a lua mais luz que o necessário e entre as sombras o atento vigilante percebe o aproximar de passos a adentrar lentamente em sua caverna. Ele segue o vulto, pronto para um degradante possível duelo pela água. A espreita, escondido entre os lajedos, Jaime observa a aparência do ladrão que de repente é revelada, quando este cruza uma brecha na caverna por onde a luz da lua penetra de forma irrevogável. E o vulto dá lugar a uma bela jovem de traços exóticos, com a pele cor de terra molhada e os olhos de um verde incomparável, afinal, por muitas datas que não houvera verde por sobre a terra. Como nunca antes Jaime estava encantado, sem medidas. Aquela moça era como a chuva mais esperada em anos de sequidão, sua pela confundida com a terra a que pisava e seus olhos de um verde como de um jardim suspenso.


Não havia luz da lua todas as noites. Mas a despeito, o vaqueiro espera a razão do seu encanto por entre as sobras observando-a beber. Á água passara a ser comum, como se fosse farta num rio, cuja importância viera a ser apenas de isca, ou luz que atrai a mariposa desejada. Jaime apaixonou-se perdidamente pelo verde dos olhos da moça da pele cor de terra. Num árido dia decidiu se preparar para então, naquela noite, revelar sua paixão para aquela que ele já a muitas noites conhecia por observar; deixaria ele seu oculto esconderijo nas trevas e contemplaria de perto os olhos de sua amada. Todavia, quando ao dar de beber ao seu cavalo, percebeu o seu reflexo ligeiro e colorado na água barrenta do seu poço. Lembrou da sua velhice em oposição ao seu passado heróico. Os traços maldosos da idade fizeram-no temer o repudio ao revelar-se a sua preferida. Jaime não pode chorar ainda, pois a seca alcançara a sua alma. Decidido a um ultimo gesto de fé antes da morte pelo desgosto tristonho, o vaqueiro selou seu velho cavalo, precaveu-se do máximo de água que poderia carregar e partiu veloz em busca do boi do tempo, decidido a derrubá-lo e ganhar em troca sua juventude de volta.

Em sua velhice, naqueles dias de seca e fome, o vaqueiro novamente cruzou todo o nordeste na busca corajosa do boi santo do tempo. Viu em sua viajem muitos miseráveis e retirantes fugidos da seca, relutavam contra a morte que os perseguia em encalço. Três meses passaram, e quando a morte sedenta veio das trevas buscar os últimos suspiros do lendário vaqueiro, ou quando o mesmo mal conseguia manter-se mais sobre seu cavalo. Sem espera, algo acontece e surpreende até mesmo a morte que interrompe sua vinda. Um vento altivo de ímpeto indescritível e força indelével perpassa entre a mata, levantas suas folhas secas, choca-se com o velho vaqueiro e o derruba sem esforço do seu cavalo. Era o boi santo tempo, fujão e zombador.
“Deus, meu Paim, tu que é acima dus homi. Tu que cunhece a peleja do nordeste e sabe do meu querer bem. Tu que é o poçu prufundo que num seca, cunforme tuas águas que são vivas, mas se faz sedento para compadecer do seu sertanejo. Tu que é Deus do sol e derrama graça como a chuva de inverno. A velhice frágil demonstra o quanto tu é forte e a juventude altiva o quanto sou fraco, igual gaio podre, diante de ti. Peço Paim, uma ultima glória que vai além do que sou. Dá a esse velho, bom Deus, a chance de uma nova vida, devolve, pela sua misericórdia e carim, meus anos perdidos!” Foi caído em terra seca com o sol sobre sua cabeça e a boca sedenta com o gosto da poeira, que o velho Jaime recitou sua oração.


De repente uma sombra... Ele abre os olhos e seu cavalo o estava a esperar. O vaqueiro monta em seu impetuoso cavalo e desperto da fuga do boi do tempo, dispara a cavalgar tão veloz quanto vento sul. Após três dias ininterruptos de cavalgada no rastro derradeiro do boi, o vaqueiro encontra-se por fim paralelo ao animal cujos cascos desterram o chão onde pisam, deixando uma nuvem de terra suspensa pelo seu caminho. Espinhos e galhos lhe são como capim que o vento corta. Estava cego, pela tempestade de areia que o boi causara em sua fuga, uma perseguição sem precedentes semelhantes entre mortais...

Jaime aproxima seu cavalo ao som dos cascos compassados, e enfim suas velhas mãos alcançam o rabo do boi do tempo. Ele sentiu como se seu braço estivesse a ser arrancado, porém nem mesmo o escuro sangue a escorrer por entre os dedos, tirou-lhe a firmeza. O velho cavalo fez seu último desvio em força para esquerda antes de sua morte pelo cansaço, e o boi do tempo foi arrastado e posto em queda, desabou por muitos espaços até, após horas, parar, prostrado resfolegando sem reação. Caído inconsciente, Jaime dormiu por três dias ao lado do cadáver frio do seu cavalo. Quando acordou, seu primeiro respirar consciente soube que seus pulmões agora comportavam o ar como balões bem cheios, seus olhos acompanhavam o horizonte e seus passos testemunhavam uma jovialidade inesgotável. Viril e moço, como seus tempos de herói, ele voltou em pressa de quem furta do tempo, para o encontro com aquela do seu desejo de amor.

Na medida do longo tempo, recuam os espaços; e logo o vaqueiro retornou para o seu sertão. Compassou seus passos vagarosos, intentando atrasar as horas e chegar em sua caverna no exato momento em que a lua frouxa derrama toda sua luz sobre a noite, no esperado instante da visita do amor que não bate em portas, apenas entra e logo faz morada como hóspede.

Toda espera naquele momento encerrou-se. Jaime entra na caverna e a luz da lua continuava a infiltrar por entre a brecha enlarguecisda, iluminando o gélido corpo de vida ausente da bela jovem, cujos olhos verdes agora estavam cerrados em fechadura.

O príncipe dos vaqueiros tremeu como uma criança que não sabe o caminho de casa. De joelhos diante da moça de pele confundível com a própria terra onde faleceu, ele chorou, pois agora havia acumulado muitas águas em sua alma. Ao seu lado estava o poço seco, cúmplice da assassina sede. Naquele mesmo local, enlutado, ele a enterrou como o camponês que enterra a semente na esperança da chuva. A brecha da caverna ganhou mais tamanho, para que a lua o consolasse com sua luz e o sol zombasse do seu degredo.



Dia e noite Jaime chorou sobre a terra onde enterrou sua amada de olhos verdes e pele cor de terra. E quando não havia verde algum por sobre a terra do nordeste, regado a lágrimas diárias, um pequeno broto rompe o solo e nasce. Um milagre! Naquele dia choveu no sertão embebedando a vida árida. A pequenina planta de olhos verdes, nascida sobre a morte, cresceu e tornou-se árvore, viveu os mesmos anos que o vaqueiro conquistou em sua vitória sobre o boi do tempo.

Jaime ganhou uma nova vida, apenas para saborear o doce vício do amor que se apodera do amante e o amargor triste de perder a quem se ama; “o que adiantou anos mais, sem ela comigo para vivê-los?” Repetiu seu jargão por muitos dias... Todavia logo pode convir que destino pior, tem aquele que morreu sem nunca amar, sem nunca entregar-se ao risco ou a busca do tempo, tentando de alguma forma deter-lo para estender um segundo mais a felicidade.

Diante dos anos dados, Jaime deixou sua vida antiga, seu afã pela fama e glórias heróicas. Dessa vez viveu uma vida ordinária, simplória para apreço do bom Deus que se agrada dos seus pequeninos. Guardou a sela e passou a viver de pequenos artesanatos oriundos apenas da sua “árvore de olhos verdes”. A despeito da tamanha simplicidade, a história da sua segunda vida também percorreu o nordeste como o sopro do vento com tantas direções, pois casais incontáveis vinham a seu encontro para que forjasse de sua árvore alianças de madeira. Alguns fizeram desse artesanato, o símbolo de almas jovens que ousam contra o tempo. Símbolo de um amor de origens sertanejas humildes, plantado em terra seca, regado a lágrimas, mas, sobretudo forte, vivo e verde como olhos da bela jovem da pele cor de terra molhada.

Castro Lins

Certamente ao ler, em qualquer estação do tempo, saberá que escrevi para você esse conto de madeira, fruto do meu simplório artesanato. Espero mágica dele... Que ele seja símbolo de amor, tempo e força em sua vida, ainda que em dias de seca. Dedico-te com todo meu carinho nordestino... Castro Lins para Dayse Molina.






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